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domingo, 20 de março de 2011


O BURRO DE CARGA


No tempo em que não havia automóveis, na cocheira de famoso palácio real um burro de carga curtia imensa amargura, em vista das pilhérias e remoques dos companheiros de apartamento.

Reparando-lhe o pêlo mal tratado, as fundas cicatrizes do lombo e a cabeça tristonha e humilde, aproximou-se formoso cavalo árabe, que se fizera detentor de muitos prêmios, e disse, orgulhoso:

-Triste sina a que recebeste! Não invejas minha posição nas corridas? Sou acariciado por mãos de princesas e elogiado pela palavra dos reis!

-Pudera! – exclamou um potro de fina origem inglesa – como conseguirá um burro entender o brilho das apostas e o gosto da caça?

O infortunado animal recebia os sarcasmos, resignadamente.

Outro soberbo cavalo, de procedência húngara, entrou no assunto e comentou:

-Há dez anos, quando me ausentei de pastagem vizinha, vi esse miserável sofrendo rudemente nas mãos de bruto amansador. É tão covarde que não chegava a reagir, nem mesmo com um coice. Não nasceu se não para carga e pancadas. É vergonhoso suportar-lhe a companhia.

Nisto, admirável jumento espanhol acercou-se do grupo, e acentuou sem piedade:

-Lastimo reconhecer neste burro um parente próximo. É animal desonrado, fraco, inútil... Não sabe viver se não sob pesadas disciplinas. Ignora o aprumo da dignidade pessoal e desconhece o amor-próprio. Aceito os deveres que me competem até o justo limite; mas, se me constrangem a ultrapassar as obrigações, recuso-me à obediência, pinoteio e sou capaz de matar.

As observações insultuosas não haviam terminado, quando o rei penetrou o recinto, em companhia do chefe das cavalariças.

-Preciso de um animal para serviço de grande responsabilidade – informou o monarca -, animal dócil e educado, que mereça absoluta confiança.

O empregado perguntou:

-Não prefere o árabe, majestade?

-Não, não – falou o soberano -, é muito altivo e só serve para corridas em festejos oficiais sem maior importância.

-Não quer o potro inglês?

-De modo algum. É muito irrequieto e não vai além das extravagâncias da caça.

-Não deseja o húngaro?

-Não, não. É bravio, sem qualquer educação. É apenas um pastor de rebanho.

-O jumento serviria? – insistiu o servidor atencioso.

-De maneira nenhuma. É manhoso e não merece confiança.

Decorridos alguns instantes de silêncio, o soberano indagou:

-Onde está o meu burro de carga?

O chefe das cocheiras indicou-o, entre os demais.

O próprio rei puxou-o carinhosamente para fora, mandou ajaezá-lo com as armas resplandecentes de sua Casa e confiou-lhe o filho, ainda criança, para longa viagem.

Assim também acontece na vida. Em todas as ocasiões, temos sempre grande número de amigos, de conhecidos e companheiros, mas somente nos prestam serviços de utilidade real aqueles que já aprenderam a suportar, servir e sofrer, sem cogitar de si mesmos.


Livro: Alvorada Cristã – Médium: Chico Xavier – Espírito: Néio Lúcio.

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